Foto: Daniel Miranda

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

CORUJAS BURAQUEIRAS II



CORUJAS BURAQUEIRAS II


As corujinhas voltaram... E eu também voltei...
- Espera aí, tem algo errado nestes versos. Não eram as andorinhas?
- Eram, Zóia, mas nesse caso somos nós mesmos que estamos novamente em evidência: querem construir uma estátua para nós.
- Ora, Zoio isto é coisa de alguém que não percebeu que estátuas irão chamar a atenção e restringir ainda mais nossa liberdade.
- É verdade. Que saudades do anonimato: Do tempo em que só o nosso amigo Joãozinho passava por aqui para armar o foguetório, e ainda pedia licença, lembra?
Foi-se o tempo em que nossos domínios eram respeitados naturalmente e tínhamos o privilégio de uma vez por ano assistir de camarote o espocar dos foguetes.
E nossos filhos, será que terão que limitar-se a morar em nossas tocas durante toda a vida para serem vistos pelos curiosos?
Segundo soube, querem construir a tal de estátua bem pertinho daqui, certamente para nos verem entre estas fitas demarcatórias horrorosas.
E estas placas então! Que passaram a fazer parte de nossas vidas desde aquele final de ano. Sabes o que elas querem dizer, Zóia? - Eu não sei. Parece que foi proposital a colocação delas. Imagina! Nós que somos símbolos da sabedoria, temos que suportá-las sem saber o que está escrito. Suprema humilhação!
- Você lembra, Zóia? Aquele monumento que ainda hoje está ali? Aquele sim, nossos pais nos ensinaram que nos representava com dignidade. Tinha um movimento de olhar de 360 graus, como nós, e servia para guiar quem estivesse em alto mar, mas somente em alto mar, nunca se aproximavam e nem espantavam ninguém.
Meu pai contava que diariamente um velhinho esguio, que tinha um filho deputado, subia até o topo e abanava para ele e minha mãe. Tinham um orgulho danado disso. Ele só não gostava daquele homem que, uma vez por ano, trazia um montão de papéis para queimar ao lado do monumento. Nesse dia eles ficavam virados para o mar, por causa da fumaça nos olhos. Você sabe! Olho de coruja é uma preciosidade, Acho que o homem conscientizou-se disso e parou de queimar papéis ali, acrescentava meu velho.
Soube também das desculpas para construção de outro monumento e a desativação deste: muitas luzes. Muitas luzes e quem estiver em alto mar irá se confundir, diziam. Com coisa que a altura destes monstrengos que nos sombreiam ao cair da tarde e os que estão sendo construídos ao longo de nossos domínios, não emitem luzes suficientes para causar confusão também com o outro monumento. Às vezes me dá vontade mudar de buraco e ser solidário com ele, como foram nossos pais com este aqui.
E querem reproduzir nossa imagem em outros locais sabia, Zóia?
- Não, não sabia e nem acho que seja uma boa. Tu achas que eles irão nos reproduzir com a fidelidade que merecemos, inclusive com os movimentos de cabeça que só nós sabemos fazer? Sem falar na originalidade das cores de nossas penas! Irão distorcer nossa imagem, isso sim!
- Esses humanos! Veja o exemplo daquela estátua na pracinha. Não aquela do centro. Aquela mais nova, que tem a estátua daquele senhor bonachão que morava perto daqui e que visitávamos com freqüência antes de virarmos "celebridades", como dizem eles, tentando nos seduzir com palavras bonitas. Pois coitado, nem os óculos possui mais.
Zóia! às vezes fico pensando sobre esse tal de progresso. Esse, que aquele pessoal dos flashes falam enquanto nos dão um empurrãozinho para nossas moradas quando chegam muito perto e sentimos medo. Acho que ele deveria vir acompanhado de tantas outras coisas mais importantes e necessárias que uma estátua. Afinal, o que vamos fazer com ela? Concentrar nossos olhares em sua direção para contar os curiosos?
Garanto que os nossos vizinhos barulhentos, que só descobrimos seus ninhos por sabermos torcer a cabeça para todos os lados sem movimentar o corpo, também não estão de acordo. Ouço falarem entre si que não toleram a presença humana. Já viste algum deixar que um humano se aproxime dele ou de seu ninho?

Pereira

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Quid est veritas?


Fonte: Wikipedia
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Quid est veritas?

Paulo Heuser


Cheguei a uma conclusão. Aqui, onde vim passar minhas férias, só há três coisas que não são chinesas, os pêssegos frescos, o doce de leite e os argentinos. Os pêssegos não resistem à viagem. O doce de leite é apenas questão de tempo. Quando fui à lavanderia, descobri que lá há um chinês argentino, ou vice-versa. É curioso ouvi-lo falar a língua de Miguel de Cervantes. É algo tão incomum quanto uma pizza de joelho de porco. De resto, tudo é chinês, desde as roupas até os aspargos. Quem diria, aspargos chineses. Tudo vai ao encontro da minha profecia. Em breve, consumiremos apenas produtos chineses e serviços indianos. Quem considera o gerúndio paulistês chato, espere pelo gerúndio indiano.
Não cabe aqui esclarecer por que comecei a discutir com o chinês argentino. Teve algo a ver com o fato de muitos conterrâneos meus exibirem certo preconceito com os produtos fabricados na China. O chinês argentino diz que o problema está na forma como enxergamos os produtos deles. Teríamos os olhos muito esbugalhados, o que provocaria distorções. Segundo o sino-platino, haveria um projeto em estudo, no congresso daquele país, que incentivaria a cirurgia plástica para a correção do formato dos olhos dos não-orientais. Quem aderisse ao plano, voluntariamente, ganharia um par de tênis e um aipode.
Quanto ao potencial criativo dos chineses, o homem da lavanderia apresenta argumentos irrefutáveis. Eles inventaram a pólvora, a bússola, o guarda-chuva, o papel, a impressão, o macarrão e a 25 de Março. Camarão empanado, tlês tipos flitos, Louis Vuitton orgânico, pilhas Duravel, nada disso chegaria aqui se não fosse o navegador português Jorge Álvares, que abriu a rota das especiarias da China, e o Paraguai, que abriu o resto. É, realmente, o homem tem argumentos fortes. Contudo, eu havia de desafiá-lo, afinal, tratava-se de um argentino, em última instância. Não seria no futebol, assunto estranho para mim e para ele, pois não tinha cabelos compridos, não usava lenço na cabeça nem gritava Maradona.
Apelei para a religião. Lembrei-me do politeísmo deles e do monoteísmo dos daqui. Desafiei-o a me mostrar alguma influência religiosa sobre nós, além do pequeno gafanhoto do Kung Fu e do templo lá de cima do morro. Por um momento, pensei tê-lo derrotado. Percebi um breve esbugalhamento dos seus olhos, logo transformado em sorriso sino-platino-maroto. Ele apertou ainda mais o olhar já apertado e falou:
- Se o encontrarem novamente, leiam com atenção o que está escrito sob aquele cálice que tanto veneram. Está em aramaico galileu, mas está lá.


prheuser@gmail.com
http://www.pauloheuser.blogspot.com/

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

CHEIRO DA TERRA

Se a chuva caisse,
Torrencialmente.
De minha alma levasse
O pó das lembranças.
Das cicatrizes, tão profundamente.
Aflorariam.
O Cheiro da terra
De meu mundo criança.
Pereira

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

FILHOS ÚTEIS



FILHOS ÚTEIS

A Lei manda que todos os estabelecimentos comerciais: bancos, supermercados, etc. mantenham caixas específicos para idosos, grávidas e deficientes físicos.
Comumente, encontramos placas indicativas informando além das três condições acima também a de "mulheres portando crianças de colo".
Precisando liquidar de vez com as parcelas do IPVA 2010, entrei em uma dessas filas, atrás de três mulheres reconhecidamente idosas.
Não entendo porque as mulheres, que tanto gostam de esconder a idade, nesses momentos apresentam-se destituídas de quaisquer artifícios que possam mascarar a verdadeira DNA (Data de Nascimento próxima ao Armistício) não o da primeira, mas o da segunda guerra mundial. Será para não serem instadas a apresentar documento comprobatório de sua condição de idosa?
Enquanto meu queixo descansava sobre o cabo da bengala compulsoriamente utilizada para amenizar os efeitos de um provável rompimento de menisco, notei que uma mulher, com idade próxima à casa dos primeiros entas, ocupava meu futuro guichê, enquanto outra passeava nervosamente pelo recinto do banco, com uma criança em cada braço.
Bastava olhar as inocentes para ver que não eram gêmeas. Uma era visivelmente mais velha e se parecia com a mulher que a carregava na sinistra, enquanto a outra, com aproximadamente dez meses, era amparada pela destra.
A fila única, dos demais clientes caminhava com a esperada normalidade: seus componentes, seguindo o traçado do chão, ora ficavam de frente para os idosos sentados contra a parede, ora ficavam de costas, mostrando que a moçoila de vestido longo possuía um trejeito e uma ondulação corporal apreciável cada vez que trocava a perna de descanso.
O que intrigava, entretanto, era o meu esperado caixa estar demorando tanto a atender a primeira das três idosas à minha frente.
A mulher com as crianças também sentia a demora e sentou-se ao meu lado. Claro, não havia braços, por mais treinados que fossem, que agüentassem tanto tempo a inquietude delas.
Passado um bom tempo, a mulher que estava sendo atendida, juntou seu calhamaço de documentos autenticados, colocou-os na imensa bolsa, que só então percebi entre seu corpo e o balcão de atendimento e dirigiu-se à mulher das crianças, pegando a sua nos braços.
Foi aí que entendi a jogada: ela e, provavelmente a secretária, foram juntas ao banco levando as crianças, para usufruírem do atendimento prioritário.
Como vingança por ter ficado em colo alheio durante tanto tempo, a menininha, ao ser colocada com o rosto sobre o ombro desnudo da mãe, vomitou-lhe as costas, levando um imerecido safanão, enquanto desapareciam pela porta giratória.

Pereira.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Culpado!

MCæleste Carloto

Aquela noite tinha sido difícil. Tivera que ficar na casa da mãe, porque seu apartamento estava fedendo à tinta. Calor, a zoeira dos mosquitos. Faltou energia! (apagão, etc). Insone por longas horas, finalmente cochilou.

E lá estavam aqueles grandes olhos avermelhados, que por tanto tempo temera. Estavam lá, esperando, na escuridão.

Olhar fixo, imobilidade, cruel, devassante. MEDO.

Acordou. Só um pesadelo, pensou. Mas não teve coragem de abrir os olhos... e se os outros estivessem ainda ali, a fixá-lo? Rolou na cama, prendeu-se nos lençóis amassados e úmidos, tentando adquirir coragem para levantar; era quase dia.

Bateram à porta, que se abriu; era a mãe que chamava para o café.

Abriu os olhos, e o tiranossauro ainda segurava a maçaneta, emoldurado pelo batente.

Desgraçada, descobriu tudo!

Liturgia da manhã

MCæleste Carloto

Saio na manhã e encontro um céu de puro azul depois de dias de chuva e calor insuportável. Me sinto expandir para abraçar o dia. A luz dourada apaga o cinza da cidade grande e uma brisa fresca envolve o corpo como uma carícia.

Meu pés estão presos no chão, mas tenho asas que me fazem surfar nas correntes aéreas... Uma garça branca voeja... são os sonhos da noite que se vão! Os ruídos do trânsito desaparecem, e até o cheiro da poluição se dilui no esplendor da manhã.

É fácil ser “Celeste” em manhãs como essas!