Foto: Daniel Miranda

domingo, 27 de dezembro de 2009

A voz da alma


Quando a inspiração vem,
e vem com a alma da gente,
com as cores do dia ou da noite,
expõe registros do invisível.
Com traços leves ou escuros,
sinuosos ou angulares,
não importa!
Calamos diante da obviedade da cor ou da não-cor.
Lavamos nossas faces,
rimos, choramos, dançamos,
fazemos a vida se movimentar.

Estrelas

Quando criança,
uma pequena constelação de estrelas
costumava embalar o meu adormecer.
De olhos fechados,
acompanhar o vai-e-vem
daqueles pontículos brilhantes,
levava-me ao mais profundo sono.

sábado, 19 de dezembro de 2009

ESPÍRITOS POBRES

ESPÍRITOS POBRES.

Corre o tempo, voa o vento.
Entre marés me escondo.
Segue o relógio, volta e meia.
Meia volta, sem retorno.
Entro na roda, portas fechadas
Sereias espreitam, morte na areia.
Ondas bem altas, encobrem faltas.
Que o tempo descobre.
Joelhos na terra, espera sem fim.
Mãos elevadas, imploram perdões.
Perdão para ti, perdão para mim.
Espíritos pobres.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

ÁREA AZUL

ÁREA AZUL
Zé conseguiu passagem promocional para viajar de avião com a esposa. A compra pela internet exigiu apenas que tivesse cartão de crédito, cujo vencimento não ultrapassasse a quantidade de parcelas com valores que cabiam em seu orçamento mensal.
Começou a perceber as diferenças dos tempos em que viajava por conta da empresa em que trabalhava quando, ao apresentar-se para despachar a bagagem, lhe entregaram uma fita já contendo os números dos assentos que deveriam ocupar, Sem que alguém perguntasse quais os que queriam dentre os disponíveis. Sequer lhe perguntaram se era fumante, como em outros tempos.
Conhecedor da capacidade média de passageiros das aeronaves, não foi difícil chegar à conclusão de que viajariam na cozinha. Mas, afinal, a passagem era promocional, metade do preço, ainda a prazo, conformou-se. O atraso de meia hora na partida também fazia parte do contexto.
Na hora de entrar para a sala de espera, bagagem de mão e bolsa da esposa na esteira e a tradicional bandeja, onde deveriam depositar chaves, telefone celular e outros objetos metálicos, que foram prontamente entregues.
Espantou-se quando foi cercado por dois vigilantes, um já portando uma enorme vara de cerca de dois metros com um equipamento na ponta.
Não soube se era o adiantado da hora e o conseqüente sono que se avizinhava, afinal, passagem em pomoção é para depois das vinte e duas horas, que lhe fez lembrar de um antigo patrão que lhe convidara para visitar as cercanias de algumas dunas próximas ao mar, a procura de tesouros enterrados por jesuítas, ou índios, nem lembrava mais. Só lembrava que ele portava um aparelho que detectava metais.
Ao cair em si, ouviu a voz do outro vigilante ordenando-lhe que desse mais alguns passos e ficasse sobre um tapete quadrado, ou retangular, naquela hora não importava o formato, onde o que estava com o equipamento passou a massagear-lhe, ordenando, inclusive, que levantasse os braços para melhor examinar, quem sabe, a procura de algum piercing nas axilas, lembrou ainda bem humorado.
Quando mandaram que virasse de costas, pensou primeiro em baixar a cabeça e fechar os olhos para que todo aquele pessoal que estava ali esperando para entrar não visse a vergonha estampada em seu rosto, Tinha plena consciência do mico que estava pagando.
Contudo, a certeza de estar sendo alvo de algum engano, lhe dava alento. Eles irão pedir desculpas e tudo ficará bem.
Mas, não foi assim. o bendito aparelhinho que lhe percorria o corpo, detectou a minúscula bolsa de moedas que utilizava para o troco diário da padaria, da fruteira e do açougue, além daquelas indispensáveis ao estacionamento na área azul da cidade.
Sacou-a lentamente do bolso, conforme orientação recebida. O que lhe fez lembrar dos filmes de mocinho, de seu passado distante, quando heróis ou bandidos eram obrigados a entregar suas armas pegando-as com as pontas dos dedos. Por fim, maldisse a traição da memória e seguiu viagem. Agradecendo estar sentado em um dos últimos bancos. Ninguém olharia para trás para apontar quem havia pagado aquele mico.
Durante a viagem foi pensando qual o motivo, apesar da evolução tecnológica, ainda não haviam inventado um aparelho que detectasse não apenas moedas no bolso dos passageiros, mas cédulas nas cuecas de tanta gente que anda por aí recebendo propina ou fazendo caixa dois para campanha política. Certamente mais Zés poderiam viajar de avião.
Pereira

domingo, 13 de dezembro de 2009

Lady Ga Ga e eu


Corsette
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Lady Ga Ga e eu


Paulo Heuser
 

Eis-me aqui, de pernas para o ar. Tento entender o que, afinal, aconteceu. Vou além e tento achar um culpado. Candidatos não me faltam. Já os tenho no rol de suspeitos: Victor Hugo, Delfim Netto, Dr. Kenneth Cooper, Lady Ga Ga, Johann Wolfgang von Goethe e eu. O fato é que o aquecimento global vinha afetando minhas caminhadas. Sábado, por exemplo, comecei a caminhar e o céu veio abaixo. Caminhada frustrada. Nos dias anteriores, então, não houve condições nem para uma tentativa. Toda história tem que ter um início, e esta não haveria de ser diferente. Um observador apressado poderia concluir que ela iniciou hoje. Ledo engano. No entanto, para uma melhor compreensão dos fatos, deixemo-nos levar por esse engano. Pensando assim, tudo se iniciou hoje, neste belo domingo de sol, coisa rara nos dias de hoje. Dia para se saltar da cama e correr, no sentido figurado, para a rua. Foi o que fiz. Dezoito graus no termômetro incitavam à caminhada vigorosa e entusiástica. Lá fui eu. Caminhei um tanto, até que o chão sumiu sob meus pés. Coisa de filme de Stephen King. Não, não é o Stephen Kanitz. O primeiro escreve histórias de terror comum, o segundo escreve histórias de terror econômico.

A sensação de não haver mais chão é um misto de espanto e impotência. Você está caminhando sob o sol da primavera, o vento traz o frescor do escapamento dos carros e o próximo passo é no nada. Simples assim, nada. Pisei numa tampa de bueiro, de cimento, e ela girou, abrindo um buraco por onde minha perna direita penetrou. Sem apoio, caí sobre o joelho esquerdo, enquanto a perna direita ficava entalada no buraco. Um passante me socorreu e retirou a tampa que prendia a perna. Livre da arapuca, fiz um breve inventário dos danos. O joelho esquerdo estava um tanto danificado, mas é na perna direita que se concentravam múltiplas escoriações feitas por uma espécie de ralador gigante de legumes.

A sabedoria popular é de grande valia, nessas horas. Um advogado apressou-se em me passar seu cartão de visita. Outro passante recomendou que eu ficasse lá e chamasse a imprensa. Um ciclista, completamente equipado, deu-me minuciosas instruções de como fechar novamente a tampa do bueiro, utilizando uma corda e pedaços de madeira. Ajudou-me muito. Por via das dúvidas tomei uma antitetânica e tratei dos estragos.

Agora, mais calmo, começo a perceber o que efetivamente aconteceu. Victor Hugo, o escritor francês, que não fabricava bolsas, escreveu Les Misérables. Pois bem, esses miseráveis fugiram da França e vieram atrás do milagre brasileiro do Delfim Netto. Enganados, não tiveram opção senão furtar as tampas de bueiros feitas de metal. A prefeitura cansou de repô-las e as fez de cimento. O Dr. Kenneth Cooper inventou essa moda de se fazer exercícios físicos, que seriam ótimos para o coração. Talvez, porém, para as pernas, não sei. Eu não fazia idéia de quem seria essa Lady Ga Ga, até que a vizinha veio pedir o CD emprestado, logo após lavarem minhas pernas. Dizem que eu a imitei perfeitamente, gritando gá, gá, a cada esfregada. Goethe entrou de gaiato, pois caí na avenida que levou seu nome. E eu, bem, eu acreditei neles!



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sábado, 12 de dezembro de 2009

O último pôr-do-sol


Foto: Paulo Heuser
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O último pôr-do-sol



Paulo Heuser


Waldo chorava. Sentado sobre o encosto do banco, junto à avenida na beira do rio, olhava para o poente, com os olhos cheios de lágrimas. Sonhava com a vida no poente. Lá, todos deveriam ser felizes, pois havia aquela luz mágica. O céu se tingia de cores que variavam a cada instante, nunca se repetindo. Esse era o fractal dos deuses. Ah, como seria bom viver no poente, viajando para sempre entre o ontem e o amanhã sem sofrer o hoje. O vento trazia sons de pássaros que já iam longe. O ocaso aquietava as coisas e os seres.
Pri gosta de correr à tardinha. Antes de sair do escritório, troca os sapatos de salto pelos tênis e a roupa de trabalho pelo short e top. Assume sua identidade secreta. O sol ainda pinta sua pele alva quando ela se alonga para a corrida do pós-dia. As fibras musculares se esticam. O cabelo loiro passa pelo boné, e ela deixa o estacionamento do Gasômetro, pronta para percorrer os cinco quilômetros e meio que a separavam do estádio. Nem inicia a corrida. Faz o que nunca fez antes. Pára, quando vê aquele rapaz sentado sobre o encosto do banco. Não é a aparência dele o que chama a atenção dela. Nem belo, nem feio, bem vestido, ele não a vê. Essa é surpresa. Será cego? Pri não passa despercebida, ainda mais vestida deste jeito. As cavas das laterais do short costumam arrancar galanteios ou grosserias, daqueles pelos quais passa. Indiferença, nunca, só se for cego. Ou se jogar do outro lado. Ele olha para o nada e chora, muito. Novamente, ela faz o que nunca fez.
Ele não percebe de imediato a sua chegada. Quando ela provoca um eclipse, passando defronte o Sol, ele sente um calafrio, o vento parece subitamente frio. Ela senta-se ao seu lado e fala, interrompendo a jornada para o ocaso. Quebra-se a magia.
- Você está bem? Ela lhe parece sincera, e seus olhos acinzentados refletem o pôr-do-sol.
Waldo suspira. Droga, está quase alcançando o horizonte. Falta pouco. É logo ali, quase dá para vê-lo. Ele repara nos reflexos dos raios de sol nos cabelos loiros da mulher. Em outra ocasião, quem sabe, não agora, não quando quase chega lá.
Tarde demais, lá se vai o horizonte, não poderá mais alcançá-lo, não hoje, nunca. Suspira, mais, e seus ombros curvam-se em desânimo. Os olhos dela imploram por uma resposta.
- Vá lá, estou.
- Então, por que chora?
- Choro porque eu queria estar lá, onde o Sol se pôs. Lá, sim, eu viveria outra vida.
Ela tomou a mão dele na sua e a apertou, bem firme. Ficaram sentados, dois estranhos olhando para onde o Sol se poria novamente, amanhã, conscientes de que aquele fora o último pôr-do-sol.





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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sexo ou acasalamento?

Foto: Marcia Antonina

Sem querer, invadi a privacidade desses dois.
Parei, fotografei e fui ignorada.
Nem se importaram comigo.
Ah, que beleza de Mata Atlântica.

Marcia Antonina


Proprius XXII

Proprius XXII

A imponência do Universo o assusta. Proprius XXII está prestes a partir em sua missão, uma viagem solitária e sem volta até o primeiro ser consciente que encontrar. Ele pertence a um grupo de partículas elementares ainda não detectadas pelos humanos, os inspírions. Ao contrário de seus primos ignorantes como os fótons, os elétrons ou os quarks, os inpírions podem pensar, se comunicar e até mesmo expressar sentimentos.

Os inspírions são as partículas da inspiração. Eles contêm informações a respeito do Universo e se juntam a algum ser para que essas ideias sejam expressas. Suas vidas acabam quando o objetivo é cumprido ou, na desgraça, quando o hospedeiro morre sem transmitir o pequeno pedaço de informação ao qual um inpírion é responsável.

Proprius vem de uma família controversa, que divulga a existência dos próprios inspírions. Cada família é responsável por uma ideia, e um novo membro só nasce quando o anterior morre. Em geral, uma família não interfere nos assuntos das outras, mas a Proprius era uma exceção. O décimo terceiro se ligou a uma das raças mais antigas do Universo e uma das mais avançadas na época, os Saurianos. Várias missões terminaram precocemente, e o local de nascimento dos inspírions perto do início do Universo quase foi descoberto. Felizmente para os outro seres, os Saurianos colapsaram antes que pudessem fazer um estrago maior.


Proprius XXII começa sua jornada rumo ao centro da Via Láctea. Ao contrário do que se acredita, os fótons não são as partículas mais rápidas do Universo. Em instantes, ou numa eternidade dependo do referencial, Proprius chega à borda da galáxia. Quando está passando perto de uma pequena estrela amarela, ele perde o controle de seu trajeto. Seria obra de um misterioso gráviton, do qual nem mesmo os inspírions sabem da existência?


- Ah, m...! – Proprius xinga quando percebe que iria atravessar um planeta cheio de seres pensantes.


É praticamente impossível passar por ali sem se chocar com algum hospedeiro em potencial. E eis que a viagem de Proprius termina precocemente ao ir de encontro com um homem de 27 anos tomando banho. E assim que se instala, sua nova moradia pensa:

- Tive uma ideia para um conto. Vou escrever a respeito das partículas de inspiração.

Semanas se passam e Proprius sabe que está fadado ao fracasso. Mesmo que não tenha chegado ao destino original, se ao menos esse humano preguiçoso escrever o tal conto, sua vida não teria sido de todo em vão. E numa quarta-feira de manhã, estas palavras são finalmente escritas.

Missão (praticamente) cumprida.

Sou águia

Foto: Marcia Antonina


Hoje
Sou águia,
Vôo e ganho os céus.
Limites?
Não, nunca mais.

Marcia Antonina

sábado, 5 de dezembro de 2009

Alguém tinha que inaugurar este local


Foto: Paulo Heuser
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O cofre


Paulo Heuser



Vai chover, muito. Evito olhar para o céu, tornei-me gaulês. Temo que ele me caia sobre a cabeça, único temor dos gauleses. Deles, pois nós tememos tudo, inclusive que nossa própria sombra nos assalte. Caminho com jeito de local, pois é perigoso parecer forâneo por aqui. Os locais não olham para os lados, já sabem tudo que há pelos flancos. Olho setenta metros à frente, com olhar de franca indiferença. Essa é a regra. Mesmo à frente, conheço tudo, de olhos fechados, o poste, o mendigo, a lixeira, a caixa de coleta dos correios, a parada de ônibus e o cofre. O cofre. É, um cofre, daqueles grandes. Não é um Fort Knox, mas abrigaria o conteúdo de muito caixa dois.

Bem, aí temos algo de novo. O cofre. Se um cofre, em pé, chama a atenção, o que dizer de um cofre tombado, de boca aberta, na esquina da Rua da Praia? Jaz inerte feito pedestre que usa a faixa. Esconde apenas um grande vazio. Esse cofre perturba minha passagem, pois penso no que aconteceu para que ele esteja ali. O mendigo está lá porque é um mendigo, é sua profissão. Dele se espera que lamurie para pedir dinheiro. Em outros tempos, cheguei a temer a aposentadoria do mendigo, por invalidez. Isso implicaria o paradoxo do mendigo da Caldas Júnior, pois ele, uma vez aposentado, deixaria de mendigar. Premiado pelo fator previdenciário, e pelos formidáveis reajustes da aposentadoria, ele logo integraria a legião dos Sem-Paim e voltaria a mendigar. Pilhado na volta à atividade, perderia a aposentadoria. Porém, a invalidez o levaria novamente à aposentadoria, e salve-nos Paim, assim por diante. São temores sofismáveis, mas retornam, de quando em quando. Bem, o mendigo que se exploda, pois o que me preocupa, mesmo, no momento, é o raio do cofre. Se cruzar por ele, terei de olhar para o lado, gesto impensável para um local. Pior do que olhar para o lado, só mesmo olhar para trás. Locais não olham para trás, nem deixam que sua sombra o faça.

Fico a imaginar por que diabos alguém largaria um cofre nesse lugar. Não é o lugar mais recomendável para se desovar um cofre roubado, ainda mais na hora do almoço. Por que ainda não o furtaram, se já se encontra jogado há mais de dois minutos? Esse trambolho, mesmo vazio, vale uma grana preta, lá pelos lados da Voluntários da Pátria. Pesa muito, deve ser isso.

Quantas perguntas sem resposta. Pensando bem, nada disso é problema meu, e é hora do almoço, hora de se olhar para a própria barriga. Só há um jeito de cruzar por ele. Olho para cima, sem preocupação com a sombra, pois está muito nublado.

Céus, vai chover, muito!





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