Foto: Daniel Miranda

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O filho espúrio

Na janela da minha garganta ele fez seu ninho, corrompendo a borboleta que ali existe. Uma lesão, diz-se. Algo irregular, de consistência sólida. Não funcionante, diz-se. 92% na roleta. Estranhas fotos, daquilo que os olhos sozinhos não podem ver. Uma sombra crescendo quieta dentro de mim, dilatando um útero que não há. Uma escuridão de não futuro, silenciosa, comendo a luz do tempo que já não sei se terei.

Está lá, disse a mulher. Eu ri. Não é verdade, pensei. Estou dormindo e sonhando. Fantasia de mente perturbada. Apenas uma comum “patia” sem “plasia” para doer. Não pode haver intrusos na minha fortaleza. Outros podem ter isso. Não eu, claro, como assim, eu? A dor que não sinto faz meu coração bater como um louco. De incredulidade? Como sintoma de não ser imortal.

Olho em busca de sua forma, mas não há sinais visíveis, apenas minhas mãos trementes e a minha energia corroída por algo que não posso enxergar. E uma canseira invencível que pensei que era de mal viver. É mentira, quero acreditar. Os doutores não mentem. Mas eles se enganam, insiste a teimosia. Porque nunca fui tão inteira como agora, diz a imagem no espelho.

Mas dias há em que viver é tormento, quando a criatura é mais forte que eu criadora. Quando meu corpo não amanhece e eu só quero que o dia acabe. Quando coisas “ites” oportunistas aproveitam a debilidade momentânea e a imortalidade não é mais crença. Quanto temo os olhos dos outros e me faço segredo.

A quietude do monstro reflete o meu silêncio. Massa indolor, diz a pesquisa. Ah! E a dor da alma, não conta? Não é uma criança, não tem forma nem pais. Este ser que cresce em mim nunca nascerá ao mundo, mas será que me levará com ele? Mesmo que se vá sozinho, e seus filhotes metastáticos não se espalhem pelo meu corpo, deixará uma cicatriz para lembrar-me sempre que já esteve aqui: Viva, Celeste, que a vida é curta!

Sei que está devorando devagar o meu corpo, mas não levará minha alma. Cortarei as asas da borboleta violada para levar embora o ogro indesejado. Não mais alada? Só ela, não eu. Eu, mais do que nunca, adejando a vida em cada sorvo de respiração. Radioativa como nenhum super-herói poderia, viverei amanhã os sonhos embolados nas curvas anteriores.

Em sobreVIDA, vou sapatear um drama flamenco no pulsar de um coração que não vai parar de bater. Cantar como se chorasse desde o estômago, sem medo da voz que poderá se perder. Explodir o mundo em fogos de artifício e em tardes de chuva. Saltar as cachoeiras num vôo cego e correr pela névoa até o deserto da cidade. Deixar o gosto da plenitude escorrer pela minha boca até ser inundação. Sentir a pele relampejando ao tato. Esquecer conceitos que são grilhões. Amar maior do que a Terra pode conter. Aceitar a impermanência como homenagem à vida. Dançar como se flutuasse depois da crisálida rompida. E fazer amor como em labaredas de calendário.

Viva, Celeste, que a vida é eterna!

2 comentários:

  1. Amiga! Quisera ter a emoção de estar lendo apenas tuas belas e poéticas prosas de nossas quartas-feiras, sem suspeitar da presença do monstro que rouba tantos sonhos. Mas como dizes: Ame e não aceite a tristeza como prêmio por tua dignidade. Viva, que a vida é eterna

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  2. Que pena cara Celeste!!! Mas como dizes, a vida é eterna. Então viva, respire, ame, sorria, cante e sejas feliz eternamente.
    Um dia todos nós estaremos lá também, onde a vida é eterna e os sonhos fluem...

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